Vinte e um de março, é o Dia Internacional de Combate ao Racismo.
Nessa data, diversos movimentos contra a opressão, entre eles, o
Quilombo Raça e Classe, vão tomar as ruas e denunciar o racismo ainda
vigente no Brasil e no mundo. Estão previstas mobilizações de norte a
sul do país.
A data de 21 de março foi instituída pela Organização das Nações
Unidas (ONU) como o “Dia Internacional de Luta pela Eliminação da
Discriminação Racial” em memória do Massacre de Shaperville, ocorrido
em 1960, em Johanesburgo, na África do Sul, e que resultou na morte de
89 pessoas, além de ter deixado 186 pessoas gravemente feridas.
Naquele dia, cerca de 20 mil negros e negras protestavam contra a “lei
do passe”, que os obrigava a portar cartões de identificação,
especificando os locais por onde eles podiam circular.
O crime praticado pelo regime do apartheid repercutiu no mundo inteiro
e praticamente obrigou a aprovar uma convenção (da qual o Brasil é
signatário) na qual se afirma que a “discriminação Racial significa
qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na
raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou
o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e/ou exercício, em
bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da
vida.”
Um marco na luta contra o racismo
Evidentemente, sabemos que a ONU e os países que assinaram a convenção
jamais tiveram sequer a intenção de realmente eliminar o racismo.
Contudo, o estabelecimento da data teve sua importância principalmente
porque foi um reflexo das vigorosas lutas que explodiram em protesto
ao Massacre de Shaperville e alimentaram os “corações e mentes” dos
milhões que, mundo afora, se levantaram contra as opressões nos anos
1960.
Transformado em exemplo mundial da face mais asquerosa do racismo, o
Massacre, por exemplo, impulsionou o ascenso das lutas pelos direitos
de negros e negras pelos direitos civis e ações afirmativas, nos EUA,
tendo inspirado a militância de ícones do movimento negro como Malcolm
X, Martin Luther King e os Panteras. Todos eles referências, até hoje,
para nossas lutas.
Novos tempos, novos massacres
A reação mundial ao massacre obrigou alguns países a adotarem medidas
efetivas para diminuir o abismo racial. Contudo, como tudo mais na
sociedade capitalista, as poucas conquistas que foram obtidas foram
sendo retiradas no decorrer das décadas seguintes, uma processo que,
lamentavelmente, se acentuou a partir do final dos anos 1980, quando
os planos econômicos e a ideologia neoliberais resultaram em profundos
ataques às populações historicamente marginalizadas, negros e negras
em particular.
Nas últimas décadas, na América Latina, em países como Brasil,
Bolívia, Equador e Uruguai, o neoliberalismo combinou-se com a
política de conciliação de classes promovida pelas chamadas “frentes
populares” ampliando ainda mais os ataques às populações
historicamente marginalizadas, incluindo seus povos nativos
(indígenas).
O resultado não poderia ser outro: mundo afora, a opressão racial
voltou a se intensificar, sendo cada vez mais colocada a serviço da
superexploração de milhões de trabalhadores, sejam eles negros ou
negras, indígenas, migrantes e imigrantes, “chichanos” (latinos nos
EUA) ou simplesmente “desterrados”, que vagam de país em país em busca
de empregos e melhores condições de vida. Todos eles submetidos aos
piores empregos e condições de trabalho, à precarização e à
vulnerabilidade.
É isto que faz com que os setores realmente comprometidos com o
combate ao racismo falem, hoje, em um processo de “genocídio” contra a
população negra, particularmente seus jovens. Genocídio praticado com
as armas na nuca nos bairros pobres e periféricos das principais
cidades do mundo. Mas, também, um “massacre” cometido cotidianamente
ao impedir o acesso dessa mesma população ao trabalho, à saúde de
qualidade, à educação e tudo mais que possa lhes garantir uma vida
digna.
Uma situação que se agravado ainda mais com a explosão da crise
econômica mundial. Exemplo disto é a onda de ataques neonazistas que
está ocorrendo neste exato momento em Toulouse, na França, onde (como
a imprensa tem noticiado), um esquadrão de ex-militares já promoveu
três ataques contra representantes da população árabe, judia e latina
(de Guadalupe, no Caribe).
Como também, certamente, é o racismo que está por trás da morte do
jovem brasileiro na Austrália, também esta semana, e a infinidade de
outros casos semelhantes que têm pipocado por Europa e Estados Unidos.
No Brasil, higienização étnico-social e criminalização da pobreza
Cinquenta e dois anos depois do Massacre de Shaperville, no Brasil, o
racismo também tem assumido formas cada vez mais perversas. Além das
práticas neoliberais, a aproximação dos chamados “grandes eventos”
(Copa e Olimpíadas) tem alimentado políticas de higienização social e
criminalização da pobreza que, sem margem de dúvidas, atingem mais
intensamente a população negra.
E é lamentável que estas políticas estejam sendo levadas a cabo pelo
“lulismo” (PT e PCdoB à frente) que, no discurso, sempre se disse
comprometido com a luta anti-racista e a defesa do povo negro. Um
discurso que, hoje, não resiste à própria realidade. E os exemplos,
infelizmente, são muitos.
Afinal, foi o governo Lula (e, agora, o de Dilma) que promoveu a
vergonhosa invasão do Haiti, um dos maiores símbolos da luta e da
resistência negra. Como também, foi este mesmo governo que mutilou o
Estatuto da Igualdade Racial (retirando dele pontos fundamentais como
as cotas e a defesa das terras quilombolas, isso pra não falar na
simples menção ao termo “raça”).
Se isto não bastasse, os governos do PT e do PCdoB tem se
caracterizado pela cooptação da lideranças e grupos do movimento negro
(com entidades como a CONEN e Unegro, à frente), levando a um
imobilismo ou à negociação de nossas bandeiras históricas, em trocas
de favores (cargos gabinetes, mandatos parlamentares e secretarias
institucionais).
Estimulados por este imobilismo e, principalmente, acobertados e
protegidos pelo próprio governo (em troca de favores espúrios e da
aprovação de projetos no congresso), a “direita” e os setores mais
conversadores do país têm, literalmente, promovido um verdadeiro
festival de atrocidades racistas.
Comandados por sujeitos asquerosos como Bolsonaro, Malafaia, Garotinho
ou a chamada “bancada cristã” estes setores têm se aproveitado da
situação para promover todo e qualquer tipo de ataque contra negros e
negras e demais setores oprimidos, principalmente gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transgêneros (LGBT) e mulheres.
Os lamentáveis reflexos disto na sociedade lamentavelmente podem ser
encontrados todos os dias nas páginas dos jornais. Somente em São
Paulo, por exemplo, a lista parece não ter fim.
No início de dezembro, uma estagiária perdeu o emprego no Colégio
Anhembi Morumbi porque se recusou a alisar o cabelo; dias depois, um
garoto etíope foi jogado para fora de uma pizzaria por ser
“confundido” com um garoto de rua; enquanto isso, na USP, um estudante
“rasta” foi brutalmente agredido por um policial e um jovem
trabalhador mofava na cadeia acusado de um crime que não cometeu (como
ficava evidente em vídeo gravado no seu local de trabalho).
E as histórias não param. No último fim de semana, todos viram a
brutalidade de um ataque contra um jovem negro, em Embu das Artes,
também em S. Paulo, e, há meses, também temos denunciado a política
elitista e racista da maior universidade do país, a USP, que tem feito
uma verdadeira campanha para desabrigar o Núcleo de Consciência Negra,
fundado em 1988.
Para além das fronteiras de S. Paulo, a situação não é diferente. No
Paraná, um jovem negro foi torturado por 48 horas; no Maranhão, há
alguns dias, outra estudante, Ana Carolina, foi impedida de entrar na
escola por ter uma cabelo “black” e, no Pará, jovens negras foram
“oferecidas” como objetos sexuais para os detentos de uma prisão.
Junte-se a isto a onda de ataques homofóbicos e as constantes
denúncias de agressões machistas e tem-se um quadro bastante
desagradável da situação dos oprimidos. Uma situação em muito agravada
por outro aspecto do projeto de “higienização” em curso: a
contra-reforma urbana. Afinal, não é preciso muito esforço para se
identificar a cor da maioria daqueles que residiam no Pinheirinho, na
Favela do Moinho, na “cracolândia” ou nas áreas, em todo os países,
das quais as populações estão sendo removidas em função das obras da
Copa e do PAC.
No que se refere à população negra, este projeto tem assumido um
caráter particularmente criminoso através da intensificação dos
ataques aos povos quilombolas ou as comunidades tradicionais, como
foram os casos recentes do Rio dos Macacos, na Bahia, e da Matinha, no
Maranhão.
Retomar as lutas, para honrar os mortos de Shaperville
Diante desta inegável onda racista, a primeira presidente-mulher do
país tem dado as costas aos oprimidos e intensificado suas alianças
com os reacionário e, consequentemente, potencializado o aumento da
violência, das ameaças, do genocídio e mortes dos negros, jovens e
mulheres das comunidades ocupadas pela “polícia pacificadora”(UPPs),
dos lideres quilombolas e indígenas, que estão em luta por seu direito
a terra.
Contudo, isto, felizmente, não tem acontecido sem a resposta dos
movimentos que lutam contra a opressão e exploração. Podemos dizer que
há um processo de reorganização dos movimentos negro, de mulheres,
LGBT, sindical e popular, no mundo e no Brasil. Um processo ainda
incipiente, mas que tem cumprido um papel fundamental na organização
da resistência e na luta contra a opressão, a exploração e a
discriminação da sociedade capitalista.
É isto que podemos ver no atos promovidos, desde o ano passado, pelo
“Comitê de Luta contra o Genocídio da Juventude Negra” (constituído em
São Paulo, como mais de 25 entidades, dentre as quais o “Quilombo Raça
e Classe”, filiado a CSP-Conlutas); na resistência quilombola e
popular no Maranhão e no Rio dos Macacos; na continuidade da luta e
solidariedade ao Pinheirinho; em campanhas como “meu cabelo é bom,
ruim é o seu racismo”, que começam a se popularizar país afora ou nas
muitas atividades que estão sendo programadas para este dia 21.
Esse é o único caminho possível para impedir a continuidade dos
“massacres” (físicos, psicológicos, sociais e políticos) que continuam
sendo promovidos pelos representantes do Capital contra a população
negra. Só a luta sem tréguas, em alianças com os demais oprimidos e
explorados, pode nos fazer honrar a memória de todos aqueles e aquelas
que tombaram lutando pela verdadeira liberdade. Este é o nosso
compromisso. E é para isto que convidamos a todos a se juntarem à
luta, neste 21 de março e até a vitória.
Repórter da Agência Brasil
Edição: Juliana Andrade e Graça Adjuto
Brasília – Uma série de pesquisas realizadas no Brasil mostra que as desigualdades social e racial típicas do país desde a época colonial marcam também a prática do aborto. “As características mais comuns das mulheres que fazem o primeiro aborto é a idade até 19 anos, a cor negra e com filhos", descreve em artigo científico inédito a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), e o sociólogo Marcelo Medeiros, também da UnB e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O texto, relativo a uma etapa da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), será publicado em julho na Revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Pública (Abrasco). A edição traz um dossiê sobre o aborto no Brasil, produzido com pesquisas feitas para o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Diniz e Medeiros coordenaram, entre agosto de 2010 e fevereiro de 2011, levantamento com 122 mulheres entre 19 e 39 anos residentes em Belém, Brasília, Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em Salvador. Segundo os autores, a diferenciação sociorracial é percebida até no acompanhamento durante o procedimento médico. “As mulheres negras relatam menos a presença dos companheiros do que as mulheres brancas”, registram os pesquisadores. “Dez mulheres informaram ter abortado sozinhas e sem auxílio, quase todas eram negras, com baixa escolaridade [ensino fundamental] e quatro delas mais jovens que 21 anos”.
Os dados confirmam resultados encontrados pelos dois pesquisadores em 2010, quando verificaram, por meio de pesquisa de urna (método em que a entrevistada não se identifica no questionário que preenche e deposita em caixa vedada), que “o aborto é comum entre mulheres de todas as classes sociais, cuja prevalência aumenta com a idade, com o fato de ser da zona urbana, ter mais de um filho e não ser da raça branca”.
Conforme a pesquisa de 2010, 22% das mulheres brasileiras de 35 a 39 anos, residentes em áreas urbanas, já fizeram aborto. No levantamento, o aborto se mostrou mais frequente entre mulheres com menor nível de escolaridade, independentemente da filiação religiosa. “Esses dados demonstram que o aborto é prática disseminada, apesar da sua ilegalidade, constituindo-se questão para a saúde pública”, comenta Wilza Vieira Villela, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que pesquisou o aborto induzido entre as mulheres com HIV/aids.
Da mesma forma, o artigo de Rebeca de Souza e Silva, do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, confirma a tese de que a desigualdade social afeta o acesso à prevenção da gravidez e também a qualidade do aborto. De acordo com seu estudo comparativo entre mulheres casadas e solteiras residentes na cidade de São Paulo, “as solteiras recorrem proporcionalmente mais ao aborto provocado (…). Contudo, as mais pobres, com menor escolaridade e maior dificuldade de acesso às benesses do mundo moderno, continuarão pagando alto preço – que pode ser a própria vida – pela opção de provocar um aborto”. Souza e Silva defende a legalização do aborto, por entender que o problema “só será resolvido se o acesso aos serviços de qualidade for equitativo” e que “a ilegalidade traz consequências negativas para a saúde das mulheres, pouco coíbe essa prática e perpetua a desigualdade social, uma vez que os riscos impostos pela tal ilegalidade são vividos, sobretudo, pelas mulheres menos escolarizadas, geralmente as mais pobres, e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro”.
Para Estela Aquino, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), “as restrições legais não coíbem a prática [do aborto] no país, mas reforçam desigualdades sociais, já que as mulheres mais pobres fazem o aborto de modo inseguro, gerando hospitalizações desnecessárias e representando riscos à saúde”. No Brasil, o aborto voluntário é ilegal e tipificado como crime no Código Penal. O aborto é autorizado em caso de estupro e de risco de morte da mulher. Neste semestre, o Supremo Tribunal Federal confirmou jurisprudência praticada em vários tribunais que já permitiram a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (malformação no tubo neural, no cérebro).